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24 janeiro, 2023




Por que somente agora parece que o mundo acordou para esta catástrofe que é um verdadeiro genocídio? Esse termo foi cunhado pela primeira vez em 1944 pelo jurista polonês Raphael Lemki diante do que o nazismo/fascismo estava impondo aos judeus nos campos de concentração. Indicava e indica até hoje um ato de extermínio sistemático de um grupo étnico ou de um aspecto cultural fundamental de um povo.


A ONU definiu em 1946 o genocídio como “a recusa do direito à existência de inteiros grupos humanos (…) um delito do direito dos povos, em contraste com o espírito e os objetivos das Nações Unidas, delito que o mundo civil condena”. Em 1948, tipificou esse crime em Convenção aprovada em Assembleia Geral no artigo 2º da mesma, cabendo ao Tribunal de Haia na Holanda julgar tais atos. Portanto o genocídio expõe qualquer nação, qualquer país, que estiver praticando extermínio de maneira sistemática como um crime passível de punição com responsabilidade individual. Ou seja, diante desse fato alguma pessoa deverá ser responsabilizada pelo ato genocida.


Estamos diante de uma história bem longa dos Yanomami que retrocede a 1970 quando os militares empreenderam a construção da Rodovia Perimetral Norte levando um conjunto de doenças e mortes para a região indígena. Sarampo, gripe, malária, caxumba e tuberculose devastaram em algumas regiões de população Yanomami cerca de 80%. Na década de 1980 houve uma grande invasão de garimpeiros nessas terras. Entre 1987 e 1989 foram contabilizadas 2003 balsas de garimpo trafegando pelo Rio Uraricoera. Isso levou à morte 20% da população somente em 1990. Em 1992, com a demarcação das terras indígenas esse movimento foi estancado, porém sempre com tentativas em invasões de garimpeiros e mineradores.


Até fins de 2018, o Exército Brasileiro foi fundamental para a proteção da Terra Indígena que abriga os povos Yanomami e Ye’kwana. Nesse ano, o Exército retirou mais de 1.500 garimpeiros do Rio Uraricoera. Contudo, em 2019 o governo brasileiro retirou as bases de proteção conduzidas pelo Exército, e nesse momento “a boiada passa”, como dizia o Ministro Ricardo Salles do Meio Ambiente. A reserva Yanomami possui 10 milhões de hectares de terra onde moram, conforme cálculos oficiais, 30.400 pessoas. Mas a boiada continuou devastando as terras, poluindo os rios, e matando pessoas.


A situação atual nos mostra um cenário devastador. Somente em Roraima há 17 pistas de pouso clandestino para garimpeiros ilegais, com 347 polígonos de área degradada. Calcula-se entre 6 a 7 mil garimpeiros, contudo a Hutukara Associação Yanomami nos informa que são em torno de 20 mil invasores recolhendo ouro ilegalmente. O governo anterior que foi responsável pela desativação da base do Exército nas Terras Indígenas dos Yanomami dizia que essa reserva não deveria existir, pois tratava-se de uma terra rica em minérios e cobiçada pelo mundo inteiro. “Ninguém vai demarcar terra com subsolo pobre e o tamanho é duas vezes o Estado do Rio de Janeiro”, dizia o ex-presidente em novembro de 2020.


O médico tropicalista André Siqueira do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) atesta que se está diante da “pior situação de saúde e humanitária”. E continua dizendo que o objetivo era fazer um diagnóstico e criar um plano de ação, mas o que se viu foi uma situação muito precária em termos de saúde de pacientes com desnutrição grave, infecções respiratórias, muitos casos de malária e doenças diarreicas. Para piorar o quadro, há uma escassez de equipes de trabalho e de infraestrutura. Há casos de desnutrição extrema em famílias inteiras. E conclui que estamos vendo uma situação “catastrófica” e “desastrosa”.


Os Bispos da CNBB do Regional Norte se dizem “estarrecidos e profundamente indignados, vendo as imagens dos corpos esqueléticos de crianças e adultos do Povo Yanomami no Estado de Roraima, resultado das ações genocidas e ecocidas do Governo Federal anterior, que liberou as terras indígenas já homologadas para o garimpo ilegal e a extração de madeira, que destroem a floresta, contaminam as águas e os rios, geram doenças, fome e morte”. A Irmã aura Vicuña Pereira que atua na Pastoral do CIMI dizia em 2021 que era preciso que a Igreja fizesse ecoar essa voz de morte e dor que nasce das Terras Indígenas do Povo Yanomami.


Para os indígenas esse momento representa o fim do mundo que eles denominam de “A queda do céu”. Em suas crenças xamanistas a terra não é colônia de exploração, mas o lugar em que habitamos. Não é uma propriedade, mas uma partilha, um presente que foi dado a todos e para o usufruto de todo. Essa é a visão xamânica de mundo. Então, da floresta vem um recado e o pensamento pleno de lucidez. São os gritos fortes, pois estamos diante da Queda do céu.


O homem branco é o povo da mercadoria, que explora desenfreadamente a natureza e ao destruir biossistemas acaba destruindo também as hastes que sustentam o céu. A queda do céu é a morte de todos. A paixão do homem branco pela mercadoria, acumulando riqueza, incapaz de compartilhar, se contrapõe à visão Yanomami do mundo. Quando o homem branco arranca o ouro debaixo da terra, arranca minerais, ele vai construindo objetos que não morrem. O apego dos homens brancos aos objetos os conduz ao adoecimento, envelhecendo e morrendo. É preciso libertar-se dos objetos, evitando a avareza, por isso se deve deixar o ouro e os minerais escondidos na terra.


Afastando-se da avareza, os Yanomami vão fortalecendo a partilha coletiva no contexto de uma economia de troca. Qualquer objeto da comunidade é partilhado fortalecendo a amizade que vai além do próprio grupo. Por isso são diferentes dos brancos que maltratam uns aos outros sem parar por causa de suas mercadorias. Um dos princípios pastorais da Igreja católica na região é que “a Boa Nova das culturas indígenas acolhe a Boa Nova de Jesus”. Não há incompatibilidade entre elas.


O grito que ecoa não é apenas de dor, de fome e de morte. É também um grito de esperança, um grito de resistência. São gritos de povos que defendem projetos de vida no sentido do bem viver. Os projetos dos homens brancos são projetos de morte. Como não lembrar do encontro do Papa com os jovens em Assis para discutir a economia?


Em 20 de junho do ano passado, o Papa Francisco conversou com os bispos da Amazônia, quando recebeu um cocar. E disse aos Bispos: “Escutem os povos indígenas, escutem as comunidades de base, o Espírito Santo age através dessas pessoas, dos pobres da Igreja, e vocês estão na fronteira, vocês estão com os mais pobres, vocês estão onde eu gostaria de estar”. E concluiu de maneira bem radical, alertando que a Igreja não pode nunca se calar: “Arrisca, meu irmão, se você não arriscar, já está errando”.


Dom Mário Antônio da Silva que esteve à frente da Diocese de Roraima desde 2016 e hoje é arcebispo de Cuiabá e 2º Vice-Presidente da CNBB, denunciava que “nos últimos três anos, o dragão devorador da mineração tomou força novamente e avança com toda ferocidade e poder das organizações criminosas sobre a Terra Yanomami”, praticando crimes, ataques e mortes, sendo “uma vergonha para nosso país e fazem o nosso coração sentir o sofrimento e a morte que os Yanomami e a natureza estão vivendo”. Sem meias-palavras denunciava “a omissão e a responsabilidade do Governo Federal, que ao invés de cumprir seu papel constitucional na defesa dos povos indígenas e de suas terras, patrimônio da União, incentiva as invasões e coloca na pauta do Congresso Nacional o projeto de lei, que legaliza a mineração em terras indígenas”.


A Igreja da Amazônia, especialmente a de Roraima onde estão os Yanomami, está conclamando a todos, juntos na defesa e na garantia da vida e do território desse povo. E isso não se faz apenas com indignação pelas redes sociais. É preciso urgentemente impedir que o projeto de lei que está no Congresso Nacional seja rechaçado pelos parlamentares. E, de modo emergencial, nos unirmos para salvar o povo e a terra que ainda restam.


Como Igreja, cada pessoa é corresponsável pelo que está acontecendo na Amazônia. Não basta a indignação diante das imagens chocantes que circulam pela internet. É preciso reconhecer que tantos católicos deram apoio a esse projeto genocida através do silêncio e do voto. Ainda é tempo para reconhecer a própria culpa. Como nos diz o administrador apostólico de Roraima, Monsenhor Lúcio Nicoletto, “é preciso de uma palavra profética para anunciar a esperança do Evangelho da Vida, mas também denunciar tudo aquilo que pisoteia os direitos fundamentais das populações indígenas e do cuidado com a casa comum”.


A Exortação Apostólica “Querida Amazônia” nos convoca para realizar um sonho que integre e promova todos os habitantes dessa terra, para poderem consolidar o bem viver. Mas impõe-se cada vez mais a necessidade de um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais pobres, e esse desastre ecológico requer sempre uma abordagem social que integre a justiça nos debates sobre o meio ambiente, de modo a ouvir tanto o clamor da terra com o clamor dos mais pobres.


Edebrande Cavalieri

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