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Pessoas de bem?

Na política, há lugar também para amar com ternura! (Papa Francisco)

No dia 03 de outubro do ano passado os brasileiros tiveram a oportunidade de escolher seus representantes, segundo os critérios da democracia representativa, para ocuparem cargos nos poderes legislativo e executivo, em nível estadual e federal. Dessa atividade resultaram escolhidos senadores, deputados federais e deputados estaduais. Passados alguns dias de campanha tivemos novo pleito pois os candidatos, em nível estadual e federal, não logram maioria absoluta. Então, no dia 30 de outubro aconteceu o segundo turno das eleições em nível nacional e estadual com a célere apuração graças as urnas eletrônicas e declaração dos vitoriosos ainda naquela noite. Seguindo o rito eleitoral e dirimidas todas as dúvidas verossímeis no mês de dezembro aconteceu a diplomação de todos os escolhidos que tomaram posse no dia primeiro de janeiro desse ano. O processo não trouxe novidade e era conhecido por todos os partidos e alianças concorrentes, seguindo a trajetória desde a redemocratização do Brasil, posterior ao período da ditadura militar. É próprio das democracias oportunizarem a troca e escolha dos seus representantes de tempos em tempos através do sufrágio livre e soberano.


A novidade, e me permito caracterizar, nefasta, foi a não aceitação do processo por uma parte minoritária da população brasileira. A segurança das urnas eletrônicas foi questionada sob o argumento de possíveis falhas devido ao ano de fabricação. Desde então esse grupo vinha se ocupando em questionar o resultado das eleições “somente em nível nacional” e pedindo uma intervenção militar. Não se questionava os resultados dos processos eleitorais voltados à escolha de candidatos ao legislativo e executivos estaduais, apenas ao executivo federal. Era um questionamento seletivo e de extrema má fé. Muitos taxaram tais manifestações, que misturam falso patriotismo, fanatismo religioso, desiquilíbrios psíquicos e oportunismo, como algo exótico. Pensava-se: “uma hora eles cansam e voltam para casa”. Foi um engano. Os poderes constituídos devem aprofundar as investigações em vista de se chegar a quem organizou e financiou o ato nefasto pois não foi algo espontaneísta.


Continuando o enredo triste, assistimos no domingo, 08 de janeiro, fatos que entrarão para a história como um dos momentos mais trágicos da nação brasileira. Um grupo denominado “pessoas de bem” marchou pelas avenidas da capital federal e destruiu o que viu pela frente nas sedes dos três poderes: Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal. Noticiou-se que obras de grande valor histórico e cultural não foram respeitadas. Estas “pessoas de bem” não se preocuparam em ficar no anonimato. Alguns fizeram questão de filmar, fazer selfies e vociferar contra as instituições da república e outros personagens públicos. O resultado que esperavam em um pleito livre e soberano não foi o esperado e por isso se autorizaram a contrariar, depredar e destruir. A barbárie estava instalada.


Soou muito estranho o fato de muitos mesclarem os atos com símbolos e discursos religiosos, inclusive com preces e orações. Algo muito contraditório porque é comum compreender que a religião tem sentido e relevância se contribui para o bem social e para a paz social. Os atos referidos não tinham preocupação alguma com a paz social. Fizeram muito bem algumas lideranças religiosas em condenar o acontecido. Nenhuma religião, se for fiel aos seus princípios, subscreveria o mal feito. Destaco a expressão do Papa Francisco sobre o papel das religiões na construção da paz descrita na Carta Encíclica Fratelli Tutti: “as várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância (FT 271).


Cabe reiterar que o mal feito não se encontra sustentação no verdadeiro sentido da religião. O Papa Francisco faz um apelo: como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspectos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações (FT 282). Reitera a necessidade de um culto que fortaleça o compromisso com a paz: “o culto sincero e humilde a Deus leva, não à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos” (FT 283). Por fim faz um apelo aos crentes: “cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros (FT 284).


Não existe fidelidade à verdadeira expressão da religião e na vida de fé nos atos desencadeados. Além da ruptura com o verdadeiro sentido da religião aconteceu também uma ruptura com os parâmetros sociais de uma sociedade civilizada. Acresce-se o rompimento político. Depredar e quebrar quando se efetiva um resultado de pleito que não agrada revela a incompreensão da política como exercício em vista do bem comum, defendido pelo magistério da Igreja Católica.


Os ditos “cidadãos de bem” fizeram um mal imenso ao Brasil e será demorada a reconstrução. Contudo, faz-se necessário a ação firme e célere como se tem feito com aqueles que atentam contra a democracia. Aceitar os resultados de um pleito feito com lisura faz parte do processo democrático e é um critério todos os países democráticos.


Continuemos caminhando e acreditando. Construir um país justo e solidário é um processo demorado devido às nossas raízes históricas. É demorado, mas não impossível. Somente a potencialização da democracia em seus diferentes processos tornará essa esperança viável. Devemos continuar sonhando e acreditando.


Pe. Ari Antonio dos Reis


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