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“Todos os direitos são meus, mas eu não sei quais são os meus direitos”


“Cão, neguinha, macumbeira. Assim me chamava a minha ex-sogra. Até hoje sofro por isso. É como se tivesse tirado minha identidade, minha confiança. Fico desconfortável quando vou a lugares onde não há outras pessoas negras e tenho crise de ansiedade quando estou nestes lugares. Shopping, por exemplo, eu já nem vou mais. Olham como se a gente não fosse nada”.


Este é o relato de uma garota de 20 anos, moradora de uma ocupação na região central de São Paulo. O que mais a prejudicou não foram as ofensas, mas as consequências. No dia em que participou da roda de conversa realizada pelo projeto Ouvidoria Comunitária Antirracista, foi a primeira vez que ela saiu de casa após dois anos reclusa, sem conseguir. Está esgotada emocionalmente. “Sinto que estou sozinha, sem saber a quem recorrer e sem forças para lutar, mesmo ainda jovem. Me sinto pequena, quase invisível. Minha defesa é tentar ignorar quando uma pessoa branca me ofende. É um problema maior, é estrutural e não somos prioridade”, lamenta a jovem.




Participaram também deste encontro outras 15 pessoas, entre moradores em situação de rua ou que vivem em ocupações na região central da capital paulista, cuja proposta foi de acolher, escutar e informar sobre o direito de denunciar qualquer tipo de agressão sofrida por conta de racismo.


“Sozinho é difícil”


Este espaço de fala e de denúncia surgiu da necessidade de aproximar estes cidadãos dos seus direitos. O projeto Ouvidoria Comunitária Antirracista acontece uma vez por semana na sede do CISARTE. O primeiro encontro se destina a discutir estes direitos, as políticas públicas e as formas de combate ao racismo. Na semana seguinte, especialistas na área de Direito escutam as denúncias de racismo e encaminham para a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania de São Paulo, responsável por efetivar a Lei Estadual 14.187/2010.


Inclusive, a criação do projeto surgiu a partir desta Lei, que penaliza os atos de discriminação racial de forma administrativa. Isso quer dizer que os culpados podem receber advertências, multas e, no caso de um estabelecimento, a licença de funcionamento pode ser suspensa ou cassada. Caso haja o entendimento de que se trata de um crime, o caso pode ser encaminhado para a polícia.



“Todos os direitos são meus, mas eu não sei quais são os meus direitos”


Além de encaminhar os casos, a Ouvidoria Comunitária Antirracista garantirá que as providencias necessárias sejam tomadas. É parte essencial desta ação exercer este controle social e assegurar igualdade no acesso à justiça. Afinal, estamos falando de um grupo de pessoas que é reflexo do descaso da sociedade e da ausência do Estado, que já não acreditam mais em direitos, porque nunca os tiveram. Inclusive, os participantes foram unânimes ao dizerem “que não adianta denunciar, porque nunca fazem nada”. E isso enfraquece ainda mais.





“O sistema quer a gente morto, mas se não consegue, quer a gente mal, para nos colocar em uma situação frágil, sem forças para lutar.” Eles tem medo de algo que não existe, porque na realidade, nós é que corremos mais risco de morte”.


Os participantes até entendem que a denúncia visibiliza o problema, mas acreditam que a mudança virá a partir de outra cultura, alcançada por meio da educação das futuras gerações. “A criança não tem esta visão de discriminação, não te julga pela aparência. Isso é algo que ela adquire por conta da sociedade, elas são ensinadas a serem racistas”, acredita uma das participantes.



“Quem é você, pessoa branca, na luta contra o racismo?”



De acordo com os presentes na conversa, é difícil evitar discriminação e, ainda muitos não se enxergam como algozes. “Quando a mídia fala sobre o assunto, sempre cria um perfil de um ‘monstro’, alguém sem educação. Os meus vizinhos, por exemplo, parecem pessoas de bem, com acesso a informações, mas toda vez que colocam o lixo de suas casas pra fora, depositam em frente à minha casa. É por que sou pobre?”, conta outra moradora de uma ocupação na região central.


Outro participante lembra que quando ocuparam um edifício ao lado de onde viviam pessoas de classe média, sofreram durante meses com o lixo que jogavam de suas janelas, dentro do prédio ocupado. “Era uma forma de demonstrar que não estavam contentes com a nossa presença. Mas nós não entramos em discussão. Simplesmente recolhíamos e mantínhamos limpo nosso espaço. Mostramos pelo exemplo de que pertencíamos àquele lugar. E deu certo. Passado um tempo, alguns moradores vieram até nós e se redimiram, disseram que estavam errados sobre o que pensavam de nós”, contou o rapaz, que trabalha como coletor de materiais recicláveis.


Como forma de defesa aos atos praticados, ele destaca a necessidade de conscientizar e assim, mobilizar cada vez mais as pessoas. E lembrou o fato ocorrido recentemente no metrô de São Paulo, quando uma mulher húngara reclamou do cabelo de outra passageira. Revoltados, os demais passageiros geraram um protesto na estação. Em um vídeo é possível ouvi-los gritarem 'racista, racista'. Eles bloquearam a saída da acusada de injúria racial até a chegada dos policiais.


Marielle presente

Leis, mudança cultural, educação, conscientização, mobilização, união, são algumas das soluções apontadas. “Mas também devemos ocupar mais espaços políticos, capazes de criar leis, políticas públicas que fortaleçam nossa identidade”, diz o jovem de 28 anos, quem está em situação de rua. “Não entendo como o negro vota em gente branca! Somos maioria da população e minoria nos cargos governamentais”.


“Precisamos ser muitos, porque os poucos que conseguem, eles dão um jeito de calar a boca. Foi o que aconteceu com a Marielle, ela poderia mudar, porque lutava pelo povo”, acrescentou um senhor cuja rua também é sua morada.


A Ouvidoria Comunitária Antirracista corrobora no que eles acreditam. O recurso destinado ao projeto provém de uma emenda parlamentar da deputada estadual @ericamalunguinho.



“Quando o bandido é branco, a vítima, negra, é que é abordada”

São Paulo tem ampla população negra em situação de vulnerabilidade, notavelmente submetida à situação de moradia precária ou à situação de rua. De acordo com o Censo da População em Situação de Rua de 2019, pretos e pardos são maioria nesta condição; totalizam 69,3%. O Censo também aponta para barreiras de acesso à justiça: apenas 15,2% dos entrevistados disseram ter acesso às defensorias públicas e 7,3% a serviços de ouvidorias de Direitos Humanos. Segundo o Mapa da Desigualdade de 2020, os distritos centrais concentram a maioria de casos de violência por racismo e injúria racial.





Ouvidoria Comunitária Antirracista

Onde ocorre: CISARTE - Viaduto Pedroso, 111 - Bela Vista, São Paulo - SP

Quando: às terças-feiras, das 14 às 17 horas

Mais informações:

(11) 97882-8434 / antirracismo@gritocontinental.org


Outros canais de denúncia:

Pode ser presencial ou pelo site da Secretaria da Justiça e Cidadania

Endereço: Pátio do Colégio, 148 - Centro – São Paulo – SP

Fone: (11) 3291 - 2600.

De segunda a sexta, das 8 às 19 horas.





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